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No fim das contas, os artistas envolvidos em Império da Luz provam o próprio ponto ao redesenhar a natureza da obra em que se encontram

Império da Luz dá tom às virtudes mais banais do cinema

 Império da Luz não parece querer implicar que o cinema é a resolução de seus problemas

O trabalho de Roger Deakins em Império da Luz é um testamento e tanto ao valor da direção de fotografia no cinema como agregadora de significados. A indicação ao Oscar deste ano, só mais uma entre as 16 (dezesseis!) do veterano mago britânico das lentes, não foi à toa: é ele quem empresta à ambientação litorânea oitentista do filme de Sam Mendes o olhar nivelador que estimula o espectador a enxergar este conto moral por vezes simplista, por vezes histriônico. De forma mais gentil do que o próprio texto merece.

Isso porque, sob a câmera de Deakins, o horizonte infinito pintado pelo Sol poente por cima do oceano é dono de deslumbramento idêntico ao que pode ser encontrado na saleta empoeirada onde o projecionista do Empire Cinema mantém os rolos de filme antigos. Enquadrada em widescreen, a grandiosidade do salão abandonado no terceiro andar do cinema, mesmo tomado por pombos e com vidros faltando. É a mesma da sala de espera do hospital onde um dos protagonistas vai parar, gravada através das janelas amplas da recepção. Além de tingir de amarelo e preencher de ar o drama escuro e sufocante que Império da Luz é no papel. Desse modo, Deakins revela nesse tratamento igualitário dos ambientes a melhor qualidade do filme: a sua visão cristalina, modesta, do verdadeiro poder da arte.

Sim, porque este poderia ser só mais um filme de um diretor premiado querendo construir “uma ode ao cinema”. Scorsese o fez em A Invenção de Hugo Cabret, Spielberg o fez em Os Fabelmans, Tarantino o fez em Era Uma Vez em Hollywood. E a ideia aqui não é julgar a qualidade individual desses filmes. Mas entender onde Império da Luz difere deles em seu uso da sétima arte como pretexto de trama. Afinal, os protagonistas do longa de Mendes trabalham em um cinema, seus embaraços e desembaraços românticos, psicológicos e sociais se dão nos arredores da exibição de filmes. E mesmo assim… Império da Luz não parece querer implicar que o cinema é a resolução de seus problemas, a qualidade redentora de seus cotidianos. Uma ferramenta para destravar os entraves do mundo.

Império da Luz

De fato, quando o cinema ganha ares pomposos de falsa importância, Mendes parece implicar que ele só deixa as vidas dos protagonistas mais difíceis. Não, o cinema faz diferença em Império da Luz justamente quando é usado como mero escape quando Hillary (Olivia Colman), a gerente do Empire, pede para o projecionista Norman (Toby Jones, excelente como de costume). Não muito depois de sofrer uma decepção amorosa e ouvir do próprio colega de trabalho a história doída de sua família, que lhe passe um filme. Ele escolhe Muito Além do Jardim, e Hillary sai de si mesma por um tempo, se vê rindo e imaginando e chorando por algo que está fora do barulho insuportável de sua mente traumatizada. Sendo assim, nas lentes de Deakins, esse escapismo é absolutamente magnífico.

E ainda bem que é, porque o restante de Império da Luz é predicado em um entendimento (na definição mais gentil possível) rudimentar das múltiplas mazelas sociais com as quais esbarra. Mendes passa muito perto de fazer dos distúrbios psíquicos de Hillary um espetáculo grotesco, e várias vezes recorre a clichês cansados quando se aproxima da questão do racismo através do personagem de Stephen (Michael Ward). Ambientado nos anos 1980 e intermitentemente focado no ressurgimento de movimentos neonazistas no Reino Unido durante esta época. Além de um sentimento antiimigração intenso incentivado pelo governo de Margaret Thatcher. Além disso, o filme passa perto demais de ser a típica história hollywoodiana que vê o preconceito de fora para dentro.

Envolvimento no filme

O foco até o da câmera está não na experiência de quem sobrevive à adversidade. Mas no olhar surpreso e horrorizado de quem a testemunha sem senti-la na pele. Daí que Mendes acaba dependendo integralmente do seu elenco para agarrar esses protagonistas e transformá-los em figuras crivelmente humanas. Ao invés de avatares mal desenhados para a identificação de um público privilegiado. É admirável que tanto Colman quanto Ward sejam bem-sucedidos nessa missão ingrata: o esforço dramático supremo de ambos. Aliás, e a química óbvia que existe em seus diálogos, faz muito para encobrir (embora não o bastante para apagar) as deficiências do texto. E assiste de forma imprescindível o trabalho estético de Deakins.

No fim das contas, os artistas envolvidos em Império da Luz provam o próprio ponto ao redesenhar a natureza da obra em que se encontram. Afastando-a da egotrip “socialmente consciente”. Assim, que poderia se tornar e aproximando-a de uma despretensão refrescante na Hollywood inchada da atualidade. O que pode levar o espectador a perdoar até seus problemas elementares. De dentro para fora, o longa prova que a banalidade maleável da arte, em oposição à rigidez academicista que alguns pretendem dar a ela, é a própria fonte de sua magia.

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Fonte: omelete