A definição sobre a forma de acionamento das câmeras era a mais esperada e controversa
O Ministério da Justiça e da Segurança Pública divulga na terça-feira (28) a portaria que regulamenta o uso de câmeras corporais por policiais de todo o país. O texto estabelece três formas de acionamento dos equipamentos:
- acionamento automático: a gravação é ininterrupta durante todo o turno do policial (modelo preferencial, segundo a portaria) ou é programada para responder a determinadas ações, sinais específicos ou geolocalização;
- acionamento remoto: feito por meio do sistema, após decisão da autoridade competente;
- acionamento pelo próprio policial: a fim de preservar sua intimidade durante as pausas e intervalos no trabalho.
Assim, cabe às autoridades estaduais decidir qual modelo adotar.
Qualquer que seja a forma de acionamento das câmeras, deverão filmar as seguintes situações, entre outras descritas na portaria:
- atendimento de ocorrências;
- atividades que demandem atuação ostensiva;
- buscas pessoais, em veículos ou em residências;
- ações operacionais, inclusive as que envolvam manifestações, controle de distúrbios civis, interdições ou reintegrações de posse;
- cumprimento de mandados judiciais;
- escolta de presos;
- todas as interações entre policiais e custodiados, dentro ou fora do ambiente prisional;
- intervenções e resolução de crises, motins e rebeliões no sistema prisional;
- patrulhamento preventivo e ostensivo ou execução de diligências de rotina em que possam ocorrer prisões, atos de violência, lesões corporais ou mortes.
No entanto, os estados não são obrigados a seguir as diretrizes propostas pelo Ministério da Justiça, mas os que o fizerem receberão recursos federais como forma de incentivo.
A portaria diz que “o repasse de recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública e do Fundo Penitenciário Nacional para a implementação ou a ampliação de projetos de câmeras corporais para os órgãos de segurança pública está condicionado à observância das diretrizes estabelecidas”.
Os estados ficarão responsáveis por prever punições para os policiais que não acionarem as câmeras corretamente.
Ponto controverso
A definição sobre a forma de acionamento das câmeras era a mais esperada e controversa. A decisão tomada pelo ministro Ricardo Lewandowski após estudos da área técnica do ministério e a realização de uma consulta pública, na qual os policiais e suas entidades puderam opinar.
Parte dos policiais alega que a gravação ininterrupta, defendida por muitos especialistas, viola sua intimidade por exemplo, quando vão ao banheiro. Esses policiais defendem o acionamento manual do equipamento.
A saída encontrada pela gestão de Lewandowski prever mais de uma possibilidade para o acionamento da gravação, mas, ao mesmo tempo, listar as situações que necessariamente precisam filmar.
Em São Paulo, o governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos) publicou recentemente um edital que muda a forma de gravação das câmeras usadas no estado. A gravação passará a ser de acionamento manual pelos agentes em determinadas situações.
A Secretaria da Segurança Pública de São Paulo justificou a mudança com base em aspectos técnicos. “Avaliações apontaram a maior incidência de problemas de autonomia de bateria nos equipamentos de gravação ininterrupta, bem como a elevação dos custos de armazenamento, vez que parte expressiva do material captado não aproveitada”, informou a pasta.
A maioria dos estados brasileiros que adota câmeras corporais na Polícia Militar determina a gravação ininterrupta das imagens.
O que mostram as pesquisas sobre o tema
Antes de editar a portaria, o Ministério da Justiça analisou 50 pesquisas científicas realizadas em países como Estados Unidos, Reino Unido, Turquia, Uruguai, Canadá, Austrália e Brasil (em São Paulo, Santa Catarina e Rio de Janeiro).
Sendo assim, essas pesquisas mostraram que o acionamento das câmeras costuma ser de quatro tipos:
- contínuo em todo o turno de serviço;
- em todas as interações entre policiais e cidadãos;
- em todas as interações de maior gravidade;
- discricionariedade do policial.
Os dados analisados pelo ministério mostraram que, quando as câmeras precisam acionar pelos agentes de segurança, as regras geralmente não são seguidas.
Um estudo sobre o uso das câmeras em Londres, onde os aparelhos deveriam ser acionados manualmente em todas as abordagens, mostrou que apenas 42% dos policiais gravaram mais de 10 vídeos no período de um mês. Outros 26% gravaram menos de 5 vídeos por mês e 6% dos policiais não gravaram nenhum vídeo.
Aliás, o estudo destaca que é “improvável que policiais tivessem menos do que 10 interações por mês com o público”, o que indica que o acionamento manual não seguiu a norma local.
Uma outra pesquisa, feita em Phoenix, no Arizona (EUA), onde se previa que as câmeras fossem acionadas toda vez que houvesse uma interação entre um policial e um cidadão, também indicou que a regra não era seguida.
“Destacam-se que em aproximadamente 45% das ocorrências elegíveis foram, de fato, utilizadas as câmeras.” Ou seja, menos da metade das abordagens que deveriam filmar acabaram sendo registradas.
A portaria do Ministério da Justiça não estipula sanções para os policiais que não ligarem as câmeras nas situações exigidas. Além disso, o texto deixa para as autoridades estaduais criarem punições para os policiais que fizerem mau uso do equipamento.
‘Despoliciamento’
Uma das preocupações dos críticos do uso de câmeras corporais é que o equipamento desestimule o policial de trabalhar, por receio de estar sendo filmado. É o fenômeno chamado de “despoliciamento”.
As pesquisas analisadas pelo Ministério da Justiça, no entanto, indicam que as câmeras, em geral, não induzem os policiais à inatividade.
Contudo, alguns estudos mostram que os equipamentos não alteram o comportamento dos policiais. Aliás, duas pesquisas mostram que, ao contrário, pode haver aumento do número de “avisos, citações ou revistas corporais” entre 30% e 40%. Mas esses dados não representam um consenso.
Assim, dos 50 estudos analisados, o único que mostrou impacto negativo sobre o policiamento foi o que avaliou o efeito das câmeras na Unidade de Polícia Pacificadora no bairro da Rocinha, no Rio de Janeiro, em 2016.
“No local, observou-se um grande efeito (cerca de 40%) na redução de revistas corporais, quando as câmeras eram portadas pelo policial. Também houve queda no número de registro de ocorrências. […] Existem evidências suficientes para sugerir que houve um efeito de indução de inatividade ou passividade policial, potencialmente devido às dificuldades de implementação e resistência da tropa”, pontuou o ministério.
No entanto, nos casos de São Paulo e Santa Catarina ocorreu o oposto: “não se observou mudança nos indicadores de esforço policial ou despoliciamento. Pelo contrário, observou-se um aumento nos casos reportados de porte de drogas (78%) e porte de armas (24%)”, diz a análise do ministério.
Impacto das câmeras na relação policial-cidadão
Segundo o Ministério da Justiça, os estudos nacionais e internacionais mais recentes mostram “uma redução expressiva do uso de força” quando as câmeras corporais adotadas pela polícia.
“As estimativas variam entre 25% de redução (no contexto norte-americano, avaliado em uma pesquisa de 2022) a 61% (no contexto de Santa Catarina).”
Aliás, os estudos brasileiros também indicam outras melhorias para as quais ainda não existe uma explicação científica.
“Há uma notável redução na subnotificação de casos de violência doméstica: na presença de câmeras, policiais passam a reportar [mais] esse tipo infracional em 69% em Santa Catarina e 101% em São Paulo”, destacou a análise do ministério.
Fonte: g1