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Geralmente, a indústria da cerveja doa os rejeitos orgânicos para a fabricação de ração animal ou os descarta em aterros sanitários

Cientistas transformam sobra da cerveja em biocombustíveis

A pesquisadora ressalta que o tratamento de resíduos orgânicos é uma realidade no país

Pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), apoiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp), desenvolveram um projeto que pode dar outros destinos a rejeitos da indústria da cerveja, ao transformá-los, por exemplo, em biocombustíveis e em fertilizantes agrícolas. Sendo assim, o projeto durou cerca de seis meses e teve realização em parceria com uma unidade cervejeira, responsável pela doação dos resíduos sólidos. Aliás, o estudo teve publicação no periódico internacional Journal Cleaner of Production.

A pesquisa une o útil ao agradável. No Brasil, o hábito de consumir cerveja é cultural. De acordo com dados da Associação Brasileira da Indústria da Cerveja (CervBrasil), em 2021, o setor produziu 14,65 bilhões de litros. Além disso, uma das matérias-primas da queridinha dos brasileiros é o malte, extraído da cevada. Depois do processo de fabricação,  sobram materiais não reaproveitados pelas indústrias, os resíduos sólidos.

Geralmente, a indústria cervejeira doa os rejeitos orgânicos para a fabricação de ração animal ou os descarta em aterros sanitários. Ao invés do descarte dos resíduos da cerveja, uma das alternativas encontradas pelos pesquisadores para a revalorização destes  foi submetê-los à digestão anaeróbia — processo em que microrganismos decompõem a matéria orgânica e, em consequência, produzem biocombustíveis. No caso do bagaço, resíduo do malte, as bactérias produzem metano (CH4), que, por combustão, gera eletricidade e calor para uso no processo de fabricação da bebida.

Cerveja como Biocombustíveis

Os cientistas do Laboratório de Bioengenharia e Tratamento de Águas e Resíduos (Biotar) da Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) da Unicamp desenvolveram um método que aumentou a concentração de metano de 29% para 56%. A técnica consiste em aplicar ultrassom no bagaço antes de sujeitá-lo à digestão anaeróbica (ver arte).

Luz Selene Buller, pesquisadora do pós-doutorado e membro do projeto, explicou que os rejeitos provenientes das fábricas de cerveja são lignocelulósicos. Isto é, compostos de lignina, celulose e hemicelulose. “Esses componentes químicos apresentam paredes celulares resistentes, o que torna difícil aos  micorganismos quebrá-las e, assim, produzir o biogás”, afirmou. Para que a decomposição da matéria orgânica ocorra, as bactérias e demais seres microscópicos devem penetrar a parede que reveste e protege as células.

Os estudiosos resolveram o problema ao realizar um pré-tratamento na matéria orgânica. Segundo Buller, a técnica adotada foi o ultrassom, que possibilitou maior disponibilização de matéria orgânica. “A parede celular é quebrada por meio do ultrassom, e, assim, os microrganismos agem melhor e produzem mais biogás”, disse.

Matéria orgânica para transformar a cerveja em biocombustíveis

Por sua vez, Tânia Forster-Carneiro — professora da FEA e coordenadora do estudo — disse que, quando purificado, o metano passa a ser denominado biometano (ou biogás), um biocombustível com diversas aplicações. “Esse combustível pode ser usado no gás de cozinha, em veículos leves ou pesados e, dentro do nosso objeto de pesquisa, como matriz energética e térmica nas caldeiras das fábricas de cerveja”, citou.

A matéria orgânica restante obtida ao fim do tratamento também pode ser usada como biofertilizante para a produção agrícola. “Além de se apresentar como uma destinação ambientalmente correta para os resíduos sólidos, a técnica permite a revalorização do bagaço de malte para criar novos coprodutos na indústria cervejeira. Além de fertilizantes para a agricultura”, ressaltou a coordenadora do projeto.

Ambas as pesquisadoras destacam que ainda não é possível fazer uma previsão sobre quando o estudo deixará o laboratório e começará a ser usado pelas indústrias. De fato, uma das barreiras é o alto custo do ultrassom. “O uso da tecnologia de ultrassom ainda é incipiente na indústria, visto os preços elevados e diversos gargalos para a aplicação industrial. Ela consome muita energia. Além disso, seria necessário alto investimento para adoção em grande escala”, respondeu Buller.

Resultados Satisfatórios

No entanto, Forster-Carneiro expôs que a digestão anaeróbia é uma técnica bem estabelecida, com custos de produção razoáveis, e não requer processos complexos para a instalação nas indústrias. A pesquisadora ressalta que o tratamento de resíduos orgânicos é uma realidade no país, mas a geração local de eletricidade e de calor pela indústria cervejeira ainda é pouco comum. “No Brasil, por exemplo, a digestão anaeróbia intensamente utilizada para tratamento de dejetos suínos. Além da queima de biogás em motores estacionários, adotada para a geração local de energia elétrica”, destacou.

O estudo obteve resultados satisfatórios, os quais indicaram que a eletricidade oriunda do biometano supriu 80% da eletricidade necessária para o pré-tratamento com ultrassom, aliado à digestão anaeróbia. Os dados demonstram que a indústria da cerveja tem potencial para reciclar os recursos usados na fabricação de bebidas e transformar em biocombustíveis. Luz Selene Buller aponta que a economia circular pode ser fortalecida dentro na indústria cervejeira. “É uma substituição das energias elétricas convencionais por uma fonte energética renovável e localmente gerada.”

Assim, os impactos ambientais dos combustíveis fósseis e a disposição de resíduos sólidos causam grande preocupação em todo o mundo. Isso tem incentivado o desenvolvimento de tecnologias sustentáveis, capazes de resolver ambos os problemas: gerar energia limpa e renovável e, ao mesmo tempo, reutilizar resíduos sólidos. Como o bagaço de malte é um material lignocelulósico disponível durante todo o ano a baixo custo, uma alternativa interessante é utilizá-lo na conversão termoquímica para aplicações energéticas. Além de matérias-primas químicas de valor agregado — o que geraria maior lucratividade para as cervejarias.

Energia elétrica

Portanto, a energia hidrelétrica responde pela maior parte da geração anual de energia do país. No entanto, em decorrência da crise hídrica, a geração local de energia sustentável tem potencial para substituí-la?

Certamente. O bagaço de malte, por ser uma biomassa renovável e limpa, pode ser utilizado de forma direta, por meio do processo de combustão, para a geração de energia elétrica. Nos processos de decomposição orgânica, o gás produzido pode ter utilização para a geração de energia elétrica e térmica em grupos geradores a gás. Ou então em processos térmicos para gerar calor (vapor, água quente, ar quente) ou frio. A fração líquida, composta por um bio-óleo, caracterizado por uma composição química complexa e com alto poder calorífico. Pode ter utilização para aquecer caldeiras ou em grupos geradores para a produção de energia elétrica. (MLG)

Método apresenta vantagens ambientais

Parte de toda a energia elétrica gerada no Brasil provém de usinas hidrelétricas e termelétricas. No entanto, as mudanças climáticas e o avanço do desmatamento em áreas vulneráveis. Seja para agricultura ou garimpo — modificam o regime pluviométrico e os níveis de recarga de corpos hídricos, como rios, lagos, e até mesmo aquíferos. As modificações impactam diretamente os custos de geração de energia elétrica.

Segundo Luz Selene Buller, pesquisadora de pós-doutorado e membro do projeto da Unicamp, a substituição da energia elétrica convencional pela gerada a partir dos resíduos da indústria cervejeira favorece o desenvolvimento de fontes energéticas alternativas e sustentáveis. “Do ponto de vista da geração local de eletricidade, a substituição da energia elétrica convencional pela gerada a partir de biocombustíveis da própria indústria favorece a circularidade da economia e contribui para a descarbonização da indústria da cerveja.”

Além disso, o uso do biofertilizante minimiza as aplicações de adubo mineral. Quando aplicado em excesso, o fertilizante NPK — à base de nitrogênio, fósforo e potássio — torna-se prejudicial ao solo. “É mais uma oportunidade de reciclagem de materiais que contribuem para a conservação de recursos naturais”, destacou Buller.

Economia circular

Assim, o projeto chamou a atenção de Flávia Talarico Saia, professora adjunta da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp — Câmpus Baixada Santista) e pesquisadora na área de microbiologia e engenharia ambiental. Ela explica que o estudo se encaixa no conceito de economia circular. “O pré-tratamento dos resíduos com ultrassom melhorou a digestão anaeróbia e, em consequência, a produção de metano. O biogás gerado é um combustível para a preparação da bebida, assim como fonte de energia no processo de ultrassom.”

Saia aponta que a pesquisa faz jus à Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS). A Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010, redireciona às fábricas a responsabilidade pelo tratamento dos rejeitos gerados em atividades industriais. Para a especialista ambiental, isso indica que há forte tendência de que a produção de energia com fontes renováveis se popularize no país. “A pesquisa mostrou que essa propensão existe e vai ao encontro da PNRS, com ganhos ambientais, sociais e econômicos”, comentou. (MLG)

Fonte: correiobraziliense